José Canoeiro

Historieta infantil

 

José Canoeiro,

Humilde roceiro,

Morava sozinho

Na beira de um rio

De águas mansas, claras,

Mas que todo ano,

Com as chuvas grossas,

Provocava enchentes,

E, urrando fúrias,

Lhe invadia a casa,

Lhe arrasava as roças.

 

Inerme, cansado

Dessa luta estéril,

Dez anos a fio,

Zé, que era solteiro,

Vendeu o que tinha,

Menos a terrinha,

Disse adeus ao tio,

Deixou-lhe a canoa,

E, com o dinheiro,

Buscou outro rio,

Dito de Janeiro.

 

Chegando à cidade,

Zé, mais que depressa,

Plantou seu barraco

Na encosta de um morro,

Entre gente estranha,

Caras de cossaco,

Bocas de piranha.

 

Então, despertando

Da tola ilusão,

José Canoeiro

Mediu a grandeza

Do seu desvario.

Era bem mais duro

Remar na cidade

Do que no seu rio.

Em redor de si

Só via ruindade,

E o cariz do céu

Mais e mais sombrio.

 

Era como um náufrago

Num mar traiçoeiro,

Cheio de voragens.

Para não morrer

De fome e de sede,

Foi ser ajudante

De Jô biscateiro,

Que o azucrinava

Com suas bobagens.

 

Após cinco meses

De labuta vil,

Zé já conhecia

A grande cidade,

Que lhe parecia

Bem menos hostil.

Andou de metrô,

Viu moça bonita,

Brigou com o Jô,

Lhe malhou o costado

Deixou-o de lado,

Foi cavar a vida

Como camelô.

 

Num domingo, à tarde,

Ao pé da favela,

Conheceu Estela,

Filha de um pintor,

Que nele acendeu

Fogueiras de amor.

 

Fez intimidade

Com "sua" cidade,

Foi lhe descobrindo

As mil maravilhas,

Conheceu bicheiro,

Driblou vigarista,

Fintou maconheiro,

Correu da polícia,

Viu afogamento

E engarrafamento,

Queimou o pé no asfalto

E sofreu na carne

Mais de um assalto.

 

Viu mendigo hirsuto

Fumando charuto

Sob o viaduto,

Na vadiação.

Ficava aturdido

Com tanto ruído,

Carro e poluição.

 

Ironia da sorte!

Ele, que deixara

A terra natal

Devido às enchentes,

Aqui as viveu

Muito mais freqüentes.

Um só temporal

Transformava a rua

Em via fluvial,

Onde navegavam

Carro e motorista

Sobre o lodaçal.

 

"Ôh calamidade!

Coisa do outro mundo!"

Dizia o migrante,

Sob a tempestade,

Sentindo saudade

Do sertão distante.

 

Saudade profunda,

Que só se aplacava

Quando ele galgava,

Com muita cautela,

A encosta do morro,

Da sua favela,

Onde também morava

Seu amor, Estela.

 

A água sempre encontra,

Às vezes, depressa,

Outras, devagar,

O caminho certo

Pra chegar ao mar.

Também Zé achou,

Com jeito e paciência,

O caminho, a estrada

Que o conduziria

Ao coração da amada.

 

Tendo como lema

"O amor tudo vence",

Entrou no Mobral,

Brincou carnaval,

Lutou sem sossego

Por um bom emprego.

 

Um rico senhor

O fez seu feitor,

Tirou-o da favela,

Deu-lhe moradia,

Manga-larga e sela,

Na periferia.

 

E Zé também teve

O que mais queria,

A coisa mais bela,

Realizou-se enfim

Seu anelo ardente:

Enquanto, ao poente,

O sol diluía

Tintas de aquarela,

Ele se casava

Com a linda Estela.

 

Assim foi, em suma,

Em versos vazado,

O caso narrado

Por Zé Canoeiro,

Rapaz obstinado,

O moço mineiro

Que trocou seu rio

Por outro, chamado

Rio de Janeiro.

 

Domingos Paschoal Cegalla

Rio, 14/04/86

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